Pilula Magica

A.A. - Culto ou Pílula Mágica

Dr. George E. Vaillant.

Psiquiatra e psicanalista, trabalha em Harvard, é mundialmente conhecido por seu livro "The Natural History of Alcoholism", e respeitado como uma das maiores autoridades mundiais em alcoolismo.

(Discurso proferido na Conferência ABEAD em 8/12/99)

Bom dia, lamento profundamente não saber falar seu idioma.

Hoje em dia, se preciso justificar minha convicção de que a instituição dos Alcoólicos Anônimos está mais para penicilina do que para vodu, devo respeitar as regras da medicina experimental. Se A.A. é semelhante a um antibiótico, eu devo demonstrar seu mecanismo de ação, devo oferecer a prova empírica de que funciona melhor do que um placebo e devo discutir seriamente os seus efeitos colaterais.

Deixem-me começar meu argumento de forma organizada. Primeiro, quais são os mecanismos mais comuns através dos quais as pessoas se recuperam de uma dependência? Certamente não através da psicoterapia. Os psicanalistas, com toda a sua compreensão e insights a respeito de necessidades orais, morrem tanto quanto o resto de nós de câncer pulmonar e doenças do coração provocadas pelo cigarro. Em minha pesquisa realizada com homens de Harvard, 46 alcoólatras receberam um total de 5000 horas de psicoterapia, uma média de 200 horas para cada homem. Um único homem recuperou-se durante a psicoterapia. A desintoxicação tampouco é eficaz. Como disse Mark Twain, "eu achei deixar de fumar tão fácil que deixei vinte vezes". Estudos a longo prazo demonstram que a espera pelo tratamento (placebo) é quase tão eficaz quanto a desintoxicação. Meio século de treinamento em aversão induzida através de emetina também não mudou a história natural do alcoolismo.

E a recuperação do abuso do álcool também não depende de força de vontade. Em quase nenhum estudo relacionado à recuperação do alcoolismo a força de vontade, constatada no momento da admissão, foi um prognóstico de recuperação. O poder que a dependência química exerce sobre os seres humanos não reside em nosso córtex. O poder da dependência em nossas mentes mora no que foi chamado de nosso cérebro de réptil. O poder localiza-se no campo das transformações celulares em células do meio do cérebro – o nucleus accumbens e o tegmentum superior. Estas transformações estão além do alcance da força de vontade, além do alcance do condicionamento e além do alcance do insight psicanalítico. A natureza do poder que a dependência exerce sobre o cérebro humano são expressados pelo provérbio japonês, "Primeiro o homem toma uma bebida, então a bebida toma uma bebida, então a bebida toma o homem". Não há atualmente nenhuma droga — exceto os opiáceos — que, em estudos a longo prazo, obtenham êxito no tratamento do alcoolismo. Porque, depois de algum tempo, nosso cérebro de réptil simplesmente nos convence a não tomar um remédio que estraga a nossa bebida. O Antabuse mostra que o dissulfiram não é melhor do que um placebo. Não existem estudos a longo prazo sobre as novas pílulas mágicas como naltrexona e acamprosato. Desconfio que por bons motivos.

Por outro lado, há quatro fatores habitualmente presentes na recuperação da maioria das dependências, incluindo o fumo, o comer compulsivo e o jogo. Estes quatro fatores são supervisão compulsória, dependência de um comportamento substitutivo, novas relações de amor, e um aumento da espiritualidade ou da filiação a grupos de ajuda. A razão pela qual estes quatro fatores são mais eficazes do que a desintoxicação ou alguns meses de aconselhamento é que os quatro fatores são importantes, não para a desintoxicação, mas para EVITAR RECAÍDAS. Médicos e hospitais não curam os diabéticos, só a restrição dietética auto imposta e a auto aplicação de insulina podem controlar o diabetes. O que ilustra que os quatro fatores esboçados são importantes para a prevenção da recaída numa amostra de comunidade composta de alcoólatras, dependentes de heroína e alcoólatras tratados. Observem que os números em cada coluna somam mais que 100%. A recuperação do alcoolismo não é espontânea.

Primeiro, a supervisão compulsória é necessária porque a força de vontade não funciona. Jacarés não atendem quando são chamados. Uma consciência externa é melhor alcançada se - sempre que aparece o impulso de usar - o dependente passar por uma experiência aversiva consistente e imediata (por exemplo, testes com drogas aleatórias) ou se lembrar de consequências médicas desagradáveis associada à bebida (por exemplo, uma úlcera dolorosa).

Segundo, é importante achar um comportamento que vá competir com a dependência. Tal comportamento competitivo -  por exemplo fumar muito, dançar samba compulsivamente - substitui o vazio comportamental produzido por não consumir heroína ou álcool e preenche o vazio produzido pela ingestão de um medicamento como Antabuse, que efetivamente evidencia uma supervisão compulsória. O que não se pode fazer é simplesmente deixar o cérebro de réptil com sede.

Terceiro, novas relações de amor são importantes para a recuperação. Pareceu ser importante para ex dependentes unir-se a pessoas a quem eles não tinham magoado no passado e a quem não são profundamente devedores. Quarto, parece importante a filiação a grupos de ajuda altruísticos, por exemplo uma religião fundamentalista ou, quando em recuperação, tornar-se um conselheiro em alcoolismo. Razões hipotéticas para isto incluem que tal envolvimento espiritual produziu uma diminuição da culpa alcoólica, um aumento em esperança e moral, e talvez um substituto não farmacológico para o prazer "oceânico" produzido pela dependência . Em meu estudo, a importância da espiritualidade era relativamente baixa entre os dependentes de heroína, porque o estudo foi realizado antes que Narcóticos Anônimos se firmasse. Entre os alcoólatras tratados a porcentagem envolvida num programa espiritual era incomumente alta, porque durante oito anos estes 100 alcoólatras tiveram acesso a aconselhamento gratuito e a grupos de pacientes ambulatórias. O enfoque desta terapia era encaminhar os alcoólatras a AA. Mais tarde, eu tentarei mostrar porque AA consegue alcançar o cérebro de réptil e o bom senso não consegue.

Casualmente, A.A. combina estes quatro ingredientes clínicos para a prevenção da recaída, pois A.A., assim como os impostos e auto aplicação de insulina e ao contrário da desintoxicação e do tratamento clínico, pode durar para sempre.

Primeiro, uma exigência básica de A.A. é que um membro tem que voltar e voltar às reuniões. Eles precisam escolher um padrinho para telefonar e ver com frequência. E eles têm que "trabalhar os passos". Cada uma destas atividades fornece uma consciência externa e uma lembrança diária de que o álcool é inimigo — e não amigo. A.A. também compreende que a supervisão compulsória funciona melhor se é escolhida. Nós sofremos com prazer debaixo das regras rígidas do nosso professor de dança, mas sonegamos impostos com os quais não concordamos. A disciplina de A.A. é sempre voluntária. Como Bill W., o fundador de A.A., dizia: "Grande sofrimento e grande amor são os nossos únicos disciplinadores".  Behavioristas cognitivos como William Miller e Allan Marlatt deram grandes passos na direção de nossa compreensão de uma prevenção eficaz da recaída. Seus princípios de prevenção da recaída, como aqueles que esbocei, usam diferentes expressões: "Evite o primeiro gole"; "Substitua os velhos amigos com quem bebia por novos amigos sóbrios"; “Regozije-se com o gerenciamento de sua vida"; "Lembre-se de sua última bebedeira" Cartazes de A.A., como os mantras dos behavioristas, afirmam "Um dia de cada vez", e "Vá com calma".

Segundo, A.A. entende o que todos os psicólogos behavioristas sabem e o que muitos médicos e pais esquecem: maus hábitos precisam de substitutos. Apenas castigar não muda hábitos profundamente enraizados. Assim, A.A. oferece uma agradável agenda de atividades sociais e de serviço na presença de antigos bebedores encorajadores, sobretudo em épocas de alto risco, como dias de festas. Oferece uma atenção positiva incondicional, café e abraços ilimitados. Em resumo, oferece uma fonte substituta de gratificação da qual o indivíduo pode se tornar dependente.

Terceiro, companheirismo e amor são tão importantes para a recuperação quanto espiritualidade. A.A. chama tal companheirismo "a linguagem do coração". Jung também sugeriu que seu édito "Spiritus contra spiritum" não era mais eficaz para a cura da dependência do que um segundo ingrediente – a "parede protetora da comunidade humana". Atualmente, não podemos ter certeza de que a importância do Segundo Passo de AA —"Viemos acreditar que um poder superior a nós mesmos poderia nos devolver à sanidade" — é porque ele abre o cérebro de réptil do alcoólatra para a espiritualidade ou o coração do alcoólatra para uma comunidade que perdoa. Eu acreditaria que o poder curativo do Poder Superior do indivíduo e o do seu grupo de A.A. casa da pessoa se superpõem. Ambos os fatores, três e quatro, parecem igualmente importantes.

As reuniões de A.A. estão cheias de antigos companheiros de bebida agora sóbrios com os quais se pode fazer amizade, mas a quem não se deve dinheiro. Estes são amigos de farra a quem você não nocauteou na semana passada. Do mesmo modo, um padrinho de AA, tal como um novo cônjuge, pode evitar uma recaída melhor do que um familiar com uma longa história de sofrimento, a quem você torturou durante anos. Não importa o quanto bem intencionado esteja, o cônjuge do alcoólatra inevitavelmente reacende velhas culpas e velhos ressentimentos - condicionamentos detonadores da recaída no uso do álcool.  Amor, sexo e apego, bem como a experiência religiosa, são mediados pelo lobo temporal, através do lobo olfativo. Com certeza, no escuro todos os gatos são pardos, mas é mais divertido se a gatinha sexual usar perfume. O lobo temporal, ao contrário da forca de vontade, pode afetar nosso cérebro de réptil.

Quarto. Em 1961, Carl Jung escreveu a Bill W. "A ânsia pelo álcool era o equivalente, em nível mais baixo, à sede espiritual de nosso ser pela inteireza, expressada no idioma medieval. A união com Deus". Esta associação se repete no valioso livro de Jerome Frank, Persuasão e Cura. O modelo descrito por Frank para uma psicoterapia eficaz (e cura espiritual) assemelha-se bastante a AA. Tal modelo envolve o compartilhamento do sofrimento com um curandeiro sancionado que está disposto a falar sobre o problema do paciente de uma forma simbólica. O curandeiro sancionado deveria ter status (vários anos de abstinência), estar equipado com um inequívoco modelo conceitual do problema (o Livro Grande), e deveria criar no paciente uma expectativa de cura (reuniões de AA são os únicos lugares no mundo povoados em grande parte por alcoólatras com sobriedade estável). Finalmente, Frank nos lembra que, em Lourdes, os peregrinos rezaram um pelo outro, não por si mesmos (Décimo Segundo Passo)

Na dependência, a espiritualidade é particularmente importante porque é uma maneira de alcançar o cérebro de réptil humano. Se os jacarés estão no controle, como podemos fazer com que eles se comportem? Certamente, como muitos médicos rurais descobriram nos anos 30, sempre se pode curar alcoolismo com morfina. E no século XIX, quando fumar ópio era um luxo dos ricos, Karl Marx afirmou, "a religião é o ópio do povo". Os opiláceos produzem a mesma sensação de paz oceânica que o encontro profundamente espiritual no êxtase religioso. A famosa declaração de Karl Marx pode mascarar um princípio terapêutico extremamente importante. A religião pode realmente fornecer um alívio que o uso da droga apenas promete.

Deixem-me explicar o que eu acredito que aconteça.

Primeiro, os alcoólatras e as vítimas de outras dependências aparentemente incuráveis sentem-se derrotados, maus e impotentes. Eles invariavelmente sofrem de baixa autoestima. Se eles quiserem se recuperar, devem ser descobertas novas e poderosas fontes de autoestima e esperança. A espiritualidade oferece um novo alento, tanto para a esperança quanto para um maior cuidado consigo mesmo. Os alcoólatras, ao contrário da maioria dos pecadores, não são apenas desagradáveis. Frequentemente, os alcoólatras infligiram enorme dor e prejuízo aos outros. Assim, quando sóbrio, o alcoólatra pode sentir uma culpa quase insuperável. Embora seja um tranquilizante pobre e um antidepressivo desprezível, o álcool é talvez o solvente mais poderoso que a farmacologia moderna possui para uma consciência culpada. Em casos deste tipo, a absolvição vinda de um "poder superior a nós mesmos" se torna uma parte importante do processo curativo.

O que é a relação científica entre a religião e os receptores de opiláceo do cérebro de réptil? No calor da batalha, há dois fenômenos relacionados. Primeiro, não há ateus em trincheiras; e segundo, os gravemente feridos frequentemente não sentem dor. Em crises graves, as epifanias espirituais e o lançamento espontâneo de endorfinas do cérebro entram de mãos dadas para propiciar o alívio da dor.

Resumindo, Deus entra pela ferida. Certamente, "chegar ao fundo" é um modo de sentir-se numa trincheira em vida civil. Mas como nós liberamos as endorfinas replicas próprias do cérebro na vida cotidiana? Um cientista pode produzir prazer no cérebro do jacaré inserindo dopamina ou morfina no hipotálamo. Ou, nós podemos afetar o cérebro olfativo, o lobo temporal mamífero que a evolução criou para reger o cérebro de réptil. O lobo temporal é a sede do olfato, e da emoção e — segundo estudos de epilepsia — do ideal religioso.

Em outras palavras, já que é improvável que nossos antepassados mamíferos se tenham drogado, na evolução o circuito límbico da dependência foi originalmente transmitido para facilitar o instinto gregário dos mamíferos.

Provas de que A.A. funciona

Quando perguntaram ao Dr. Jack Norris, um antigo amigo e custódio não alcoólico de Alcoólicos Anônimos, como AA funciona, sua resposta foi "funciona muito bem, obrigado". Entretanto, é difícil conseguir-se uma informação empírica sobre a eficácia de Alcoólicos Anônimos. Uma razão é que, no processo de seu longo e crônico distúrbio, os alcoólatras encontram muitos tipos diferentes de intervenções, muitas vezes simultâneas. Ao contrário do que acontece com a maioria dos antibióticos, não há como se poder fazer um estudo controlado. Segundo, ao contrário de programas clínicos, A.A. está mais interessado nos efeitos do programa sobre a recuperação daquele que pratica os Doze Passos, do que propriamente naquele que foi alvo do trabalho de Décimo-Segundo Passo. Terceiro, a razão para a ausência de dados é que, devido a diferenças ideológicas e rivalidade, é difícil que os clínicos avaliem AA sem ideias preconcebidas.

Mais que uma década atrás, Emrick reuniu 56 pesquisas sobre AA, 15 das quais consideraram A.A. superior a tratamentos alternativos. Entretanto, nenhum desses 15 relatórios de pesquisa deixava de apresentar falhas graves. Fiquei impressionado com vários estudos recentes, que oferecem provas experimentais para a eficácia de A.A. O primeiro estudo ofereceu provas de que o aumento do número de membros de A.A. pode ser responsável pelo decréscimo da morbidade por cirrose. Os investigadores observaram que não havia qualquer relação entre o aumento da utilização de tratamento profissional e a queda da taxa de cirrose. O aumento do número de membros de AA, entretanto, estava significativamente associado à diminuição de cirrose.

Um segundo estudo controlado veio de William Miller: um acompanhamento, de quatro a oito anos, de clientes treinados para voltar a beber socialmente. O propósito dos grupos de tratamento de Miller era a volta ao beber socialmente, não a abstinência, e certamente não envolver seus pacientes com AA. Ainda assim, a maioria dos bons resultados a longo prazo de Miller foi com os abstêmios, não com bebedores sociais. Um exame de seus dados revelou que 53% dos 13 clientes que fizeram mais de 100 visitas a A.A. eram eventualmente abstêmios, em contraste com apenas 20% dos 81 clientes que assistiram a menos de 100 reuniões, uma diferença estatisticamente importante. Terceiro, eu realizei estudos de 30 anos de acompanhamento de alcoólatras em duas amostras de comunidades. Em ambas as comunidades, 40% dos alcoólatras eventualmente abstinentes eram significativamente envolvidos em A.A. (Vaillant, 1995). Quarto, num estudo de 30 anos de 100 alcoólatras tratados, a frequência de AA levou à abstinência estável aqueles mesmos pacientes que, com base em suas características na admissão, teriam recebido um prognóstico de não-recuperação. Ao fim de 8 a 12 anos de acompanhamento, 57% dos que foram a AA 100 vezes ou mais chegaram a uma abstinência estável, em contraste com 11% dos homens e mulheres que não o fizeram.

Além disto, há provas indiretas que apoiam a eficácia de AA. A organização continua a crescer em todo o mundo. Há duas vezes mais membros vivendo fora dos Estados Unidos do que no país. Há três vezes mais grupos de AA per capita na Costa Rica e em El Salvador do que nos Estados Unidos. Durante os últimos 15 anos AA cresceu exponencialmente na antiga União Soviética e na Europa Oriental.

Durante os últimos 20 anos, tem havido provas crescentes de que AA é aplicável a populações muito diversas. A literatura não tem identificado nítidas diferenças de personalidade entre alcoólatras que fazem ou não uso de AA. Nem raça ou educação, nem gênero ou classe social, nem extroversão ou saúde mental distinguem os alcoólatras que frequentam AA dos que não o fazem. A única variável consistente que distingue os membros alcoólicos de AA dos alcoólatras não AA é que os membros de AA tendem a ter maior gravidade de sintomatologia alcoólica.

Efeitos colaterais de Alcoólicos Anônimos

Desde seu início, AA produziu seus detratores. A retórica e a linguagem carregada de emoção idioma de AA destinam-se a atingir o cérebro de réptil através do sistema límbico. Isto assustou jornalistas e cientistas sociais que compreensivelmente temem os demagogias e cultos. Qualquer conjunto rígido de convicções que são rigorosa e apaixonadamente seguidas, mas não cientificamente provadas, sejam elas a vitamina C, o cristianismo fundamentalista, ou a corrida diária, tende a irritar a comunidade científica. Em 1998, o mesmo medo latente foi posto na capa do US World News Report: "O que AA não vai lhe dizer". O assunto da matéria de capa era o único dogma de AA: que não é seguro para os alcoólatras voltar a beber controladamente. A literatura de acompanhamento a longo prazo concorda unanimemente que a posição de AA é muito mais prudente, mas isso não impede que a comunidade médica odeie os puritanos.

Mas também é a dependência de Alcoólicos Anônimos de "Deus" e de "espiritualidade" o que faz com que muitos observadores cuidadosos considerem que AA será perigoso. Como pode a fé em Deus curar os doentes?

A bem da verdade, AA nada tem a ver com religião. O prefácio do Livro Grande a firma: "Alcoólicos Anônimos não é uma organização religiosa" (Prefácio, Segunda Edição, página XX, 1955). As bases espirituais de AA desenvolveram-se a partir da experiência intelectual de três homens, William James com sua "Variedades da Experiência Religiosa", Carl Jung com sua advertência "Spiritus contra spiritum" e o co fundador de AA, Dr. Bob, com seu permanente interesse por religião comparativa. Profundamente desconfiado de todas as religiões organizadas, cada um destes homens era um dedicado estudioso do conceito de cura presente em todas as religiões. Em falta de um termo melhor, deixem-me chamar esta propriedade comum de "espiritualidade". As religiões, como as nações, opõem-se a que você tenha dupla cidadania. AA, como as Nações Unidas, espera que cada membro pertença também a outra organização. A desconfiança em relação à religião é compartilhada por muitos – sobretudo profissionais de Ciências Sociais – que acreditam, como Sigmund Freud (Futuro de uma Ilusão, edição standard, volume 21), "Nós podemos agora argumentar que chegou provavelmente a hora de substituir os efeitos da repressão (e da religião) pelos resultados da operação racional do intelecto". Num clima de hipocrisia vitoriana e autoritarismo moral mal consolidado, a ênfase nos aspectos neuróticos da religião foi indubitavelmente valiosa. Mas um século depois, quando o pêndulo oscilou na direção oposta para niilismo moral mal consolidado, podemos perfeitamente nos tornar mais tolerantes para com a espiritualidade. Desde o início, AA não fez nenhuma distinção clara entre Deus e "a irmandade de AA". Houve uma permissão tácita, se não explícita, para substituir o conceito de Deus pelo que o Jung chamou "a parede protetora da comunidade humana" – por definição, um poder superior a nós mesmos.

Realmente, o princípio de substituir drogas por pessoas pode muito bem ser grande parte do poder curativo de AA. Minha suspeita é que, nos mamíferos, o sentimento oceânico induzido pela reunião com companheiros de vida muito queridos tem um grande valor de sobrevivência. Eu acredito que o circuito neural para esta alegria oceânica tenha criado o circuito que é içado pela dependência – o circuito recompensador da dopamina.

O medo que Freud e outros cientistas sociais racionais têm de uma supostamente perigosa dependência dos AA de Deus e da espiritualidade pode ser desmistificado por um dispositivo simplista, mas heuristicamente útil. Deixem-nos dividir nosso conceito de religião em facetas úteis e em facetas perigosas, comparáveis aos efeitos colaterais de qualquer droga poderosa. Todos os tratamentos médicos têm efeitos colaterais. O Prozac pode levar à impotência, e a penicilina à anafilase. A religião leva muitas vezes a cultos e à intolerância. Minha tese é que, quando examinado deste modo, AA é notavelmente isento de efeitos colaterais.A. A. é um Culto?Muitas pessoas são tolerantes em relação à espiritualidade mas se preocupam com AA porque receiam que seja um culto. Eu gostaria de discutir seis características que distinguem AA de um culto. Uma preocupação com os cultos é que eles exercem controle sobre a mente e removem a liberdade de ação. Eu também me permito desconfiar de puritanismo, dietas da moda e maratonas. Sou, como qualquer outro, apaixonadamente contra uma preocupação obsessiva com correr, ou com se sentar sóbrio em duras cadeiras de igreja inalando passivamente a fumaça de cigarros alheios. Mas, se tais comportamentos me impedissem de morrer de doenças cardíacas ou de alcoolismo, eu poderia mudar de idéia. Quando foi apresentada pela primeira vez, a cirurgia da ponte de safena não prolongou vidas, mas os regimes de exercício impostos, com o seu consentimento, aos pacientes safenados prolongaram. Seguir os passos rigidamente sequenciais de AA é como seguir os passos rigidamente numerados de um regime de exercícios. O propósito da rigidez não é, como no caso dos cultos, retirar sua autonomia, mas apenas que você não recaia no uso do álcool. Uma segunda diferença entre um culto e AA é sua estrutura governamental. AA insiste que seus líderes não governam; eles servem. Um princípio fundamental em AA é que "é perigoso impor qualquer coisa a qualquer pessoa". O organograma de AA é uma pirâmide invertida. Seus processos legislativos são excessivamente democráticos. "Nossos líderes são servidores de confiança; eles não governam". Posições de responsabilidade em AA são definidas como "serviço sem autoridade" e são muito diferentes das mesmas em um culto. Os cultos caracterizam-se por líderes carismáticos com poderes infalíveis. Visões minoritárias são severamente castigadas.

Na verdade, um das preocupações ocultas que a profissão médica pode ter em relação a AA é sua insistência numa verdadeira democracia e seu fracasso em dar ao profissional médico altamente preparado uma autoridade especial. Os médicos consideram uma impertinência que AA às vezes desconfie dos doutores como os doutores desconfiam de AA. Em AA, como no treinamento atlético, o que se valoriza não é o aprendizado em livros, mas sim uma vivência bem sucedida. Os "vencedores" – os que estão sóbrios há mais tempo – são mais valorizados do que professores de Harvard, como eu, com teorias de como permanecer sóbrio. Eu mostro a meus próprios pacientes alcoólicos, aos quais cobro $125 por hora, que AA pode fazer o mesmo trabalho por um dólar por reunião. Perco muitos pacientes deste modo. Uma terceira crítica aos cultos é que eles encorajam a dependência. Assim, AA tem sido criticado por seus membros ficarem tão necessitados das reuniões das 8 horas da noite quanto precisavam antes do próprio álcool. Esta carga de criação de dependência merece uma cuidadosa consideração. Os cultos certamente tiram proveito do fato de que as pessoas experimentam um alívio da angústia emocional quando se sentem íntimos do que Mark Galanther chama um "casulo social". Mas a cura pela filiação não pode ser limitada a cultos. Famílias, fraternidades, times esportivos exercem o mesmo poder e a mesma coesão de visão mundial. Contar honestamente a sua história a confidentes de confiança, em especial histórias de acontecimentos carregados de culpa, é uma parte essencial de diversos processos de iniciação. A oportunidade a ser "visto" e "ouvido", por um grupo amoroso é uma das mais curativas experiências humanas e reduz a alienação social. Quarto, os cultos acreditam que são a única saída. Por definição, cultos envolvem intolerância. Mas ao contrário das organizações evangélicas, AA só procura alguém se este alguém pedir.

Em contraste com o evangelismo, A.A. se considera um programa de atração, não de promoção. É pegar ou largar. Há mais pragmatismo do que ideologia em AA. O formato para uma consulta de AA para um grupo em dificuldades não é uma lavagem cerebral ou uma ameaça de excomunhão, e sim:

1) Se não me engano, já vi um problema igual ao seu;

2) O que foi feito foi isto;

3) O resultado foi este; e

4) Você não precisa seguir meu conselho.

Quinto, as Doze Tradições de AA refletem o esforço de vinte anos de Bill Wilson para impedir que AA se tornasse um culto. Estes princípios incluem:

(a) o anonimato – um antídoto para o narcisismo (Wilson recusou um título honoris causa de Yale e a capa da revista Time para não quebrar seu anonimato);

(b) a pobreza enquanto corporação – a incapacidade dos partidos políticos americanos de observar este princípio ameaça toda a democracia americana;

(c) o único propósito de AA é a prevenção da recaída alcoólica – nenhuma política, nenhuma controvérsia, nenhum envolvimento em outras doenças mentais.

Sexto, e talvez o mais importante ingrediente que distingue A.A. de qualquer culto que conheço - inclusive o meu próprio e querido Instituto Psicanalítico Freudiano – é que A.A. tem senso de humor e os cultos não têm. Havia risos em todas as reuniões de AA que eu já assisti. Cultos normalmente não observam a famosa "Regra número Sessenta e Dois de AA: Não se leve tão a sério".

Em resumo, a razão pela qual A.A. funciona é provavelmente porque seus membros têm uma doença tão grave que mata 100.000 americanos por ano e AA permite que o sobrevivente desesperado se reúna a uma irmandade de confiança mútua. Um padrinho de AA, como um sargento da Marinha ou um fisioterapeuta, pode ser dogmático, mas nenhum está tentando salvar almas – só vidas.

Baseado nisto foi que, em 1951, Alcoólicos Anônimos receberam o Prêmio Lasker (indiscutivelmente o mais importante prêmio de Medicina da América).

O prêmio considerou A.A. "Um grande empreendimento no pioneirismo social que forjou um novo instrumento para a ação social, uma nova terapia baseada na afinidade do sofrimento comum, algo com grande potencial para as incontáveis outras enfermidades da espécie humana”. Uma afinidade de sofrimento comum pode não ser tão específica quanto um antibiótico, mas essa afinidade é muito mais curativa e muito menos perigosa que um culto.