Dr. W. W. Bauer
Membro da Associação Médica Americana
Como um autofalante ambulante, tenho enfrentado inúmeros auditórios. Um de meus funcionários disse-me há pouco tempo que eu tinha feito mais de mil discursos, o que é um magnífico tributo á paciência dos americanos. Geralmente não tenho receio de falar em público, mas tive um convite há mais ou menos um ano, quando a A.M.A. se reuniu em São Francisco para falar numa reunião aberta de A.A., no centro dessa cidade, e devo confessar que nunca tive tanto medo em toda a minha vida na expectativa dessa reunião, porque não via nenhuma boa razão por que deveria ser apresentado ali para falar a vocês AAs.
Lembrei-me do jovem reitor da Igreja Episcopal a qual pertenço. Ele foi consagrado Bispo, o que naturalmente foi um grande evento na vida desse jovem clérigo episcopal. Depois da solene cerimônia de consagração, houve um banquete e a mesa dos oradores foi colocada numa plataforma para que todos pudessem ver o novo Bispo. Antes de sua apresentação, fizeram-lhe grandes elogios, e quando chegou sua vez de responder, ele disse: "Eu me sinto como o cavalheiro ligeiramente inebriado, numa noite de luar, que caminhou até o meio da ponte olhou para a água e ao ver a lua refletida nela, sacudiu a cabeça e disse para si mesmo: "Diabo, como vim parar aqui em cima?"
Não me sinto tão apreensivo neste momento, porque aquela audiência de AAs provou ser igual às demais; foram muito atenciosos e amáveis com o orador; ouviram-me com cortesia, depois tiveram a amabilidade de dizer que tinham gostado. Mas a razão pela qual me sinto em casa neste momento é devido ao que aconteceu com minha esposa que me acompanhava nesse dia. Depois da reunião, ficamos de pé junto a um grupo de AAs e de convidados, suponho, e como estávamos batendo papo, um cavalheiro uniu-se ao grupo e foi apresentado à roda. Quando viu minha esposa, olhou para ela e atenciosamente lhe perguntou: "Onde você tem estado? Há dois anos você não frequenta uma reunião."
Isso foi muito engraçado, porque minha esposa é praticamente uma abstêmia.
Minha experiência com A.A. vai desde a época em que costumava transmitir programas radiofônicos na cadeia NBC, semanalmente, e tive o privilegio de colocar no ar um programa sob orientação e direção de um dos membros de A.A. da área de Chicago. Desde essa época, comecei a entender um pouco o que era A.A. Naturalmente, uma pessoa como eu nunca poderia entender isso completamente. Não sou psiquiatra como o Dr. Tiebout, de maneira que meu conhecimento prático é somente aquele de clínica médica. Não sou membro de A.A., portanto não tenho a experiência que vocês têm e afirmo com toda a sinceridade que me sinto muito humilde nessa posição, perante um grupo de pessoas como vocês.
Tudo o que posso fazer é tentar expressar-lhes o sentimento da classe médica, um sentimento que vem crescendo permanentemente através do desenvolvimento da organização de vocês e que agora, acredito, pode-se dizer que está totalmente cristalizado - um sentimento de que A.A. tem uma parte muito grande e importante nas respostas que agora temos para o problema do alcoolismo.
Sabemos perfeitamente que o alcoólico é uma pessoa doente. Essa é uma frase muito simples. É hoje em dia uma frase aceita, e nós ainda sabemos que não faz muito tempo o alcoólico era olhado como um estorvo, uma peste, uma pessoa que poderia mudar de repente para melhor, se realmente quisesse. Era olhado como um ser mimado e como uma pessoa inútil. Hoje em dia sabemos que é um indivíduo doente, numa área onde nosso entendimento talvez seja menor que o de qualquer setor da medicina, ou seja, a doença das emoções.
Estamos hoje em dia, em alguns aspectos, na mesma posição com relação à doença emocional que estávamos há cinquenta anos com referência à tuberculose. Minha memória não vai tão longe. Há somente trinta e nove anos saí da faculdade de medicina, mas pela literatura anterior sei que na mente de muitas pessoas persistia a idéia de que a tuberculose, uma doença contagiosa que ataca as pessoas sem que exista culpa por parte delas, era uma desgraça. As famílias escondiam frequentemente a pessoa tuberculosa, assim como hoje em dia escondem o alcoólico. Posso me lembrar muito bem, e assim podem todos os médicos que estão nesta reunião, quanto tínhamos a mesma atitude com respeito ao câncer. O câncer era visto como um estigma, uma maldição, algo para ser escondido, porque era um reflexo sobre a família. Hoje em dia sabemos que o câncer é uma calamidade, e estamos começando a entender que devemos adotar a mesma atitude com relação às doenças mentais e emocionais que temos lenta e penosamente adotado com referência à tuberculose e câncer. A doença das emoções não é alguma coisa de que se possa envergonhar mais do que a doença do corpo. Não deveríamos mais hesitar em consultar um psiquiatra, a não ser pela falta desses importantes especialistas, da mesma forma que não deveríamos hesitar em consultar um ortopedista por um problema no pé.
Há muito que ver nas atitudes. A estrela cinematográfica do passado, Clara Bow, disse certa vez que se ela dissesse que seus pés estavam doendo, obteria a compreensão de todos; se dissesse: "Meus pés estão me matando" ririam. Tudo é questão de atitude, e devemos aprender a consultar o psiquiatra com a mesma atitude que o fazemos com qualquer outro especialista, sem o sentimento de vergonha, sem o sentimento de que é um estigma. Há certas frases que os médicos são obrigados a usar, para que possamos aprender a entender, aceitar e aplicar.
Temos que aprender com a medicina, e o público como um todo vai ter que aprender com as tremendas diferenças individuais que há entre as pessoas. Diferenças de resistência, por exemplo. Algumas pessoas se cansam mais facilmente do que outras. Existem pessoas que são vítimas de infecção mais facilmente por causa da diferença de metabolismo. Há diferenças marcantes, como vocês sabem, na inteligência das pessoas e precisamos também aprender a reconhecer as diferenças na estabilidade emocional. Há pessoas que podem "suportar" mais do que outras. Ser capaz de suportar é geralmente visto como uma virtude, e assim é maravilhoso quando alguém tem uma virtude. A coragem também é uma coisa admirável, e mesmo assim quando se pergunta a eminentes soldados e líderes militares se nunca tiveram medo no campo de batalha, a resposta, se forem honestos, será realmente: "Naturalmente que sempre tenho medo no campo de batalha. Eu seria um idiota se não tivesse. Há perigo aí."
Devemos também aprender que há situações de batalha, para nós, nas quais devemos ter medo, alguns mais que outros. Não é grande mérito para mim, como indivíduo, não ser tentado pelo álcool. Tenho minhas próprias tentações. Sou tentado pelo tabaco, sou tentando pela comida e há justamente tanta intemperança em ceder a essas tentações como há para alguns de vocês e muitos outros, que são ou foram tentados pelo álcool.
Por isso, nós da classe médica, estamos satisfeitos por colaborar com A.A. Precisamos da colaboração de vocês, assim como precisam da nossa, para resolver esse problema que é o alcoolismo. Vocês têm chegado, por seus próprios caminhos, a algumas das mesmas soluções que a medicina chegou com relação ao tratamento do alcoolismo. Temos aprendido, por exemplo, como vocês também aprenderam, o valor da terapia de grupo em muitas situações. Suponho que a primeira indicação da terapia de grupo na medicina, pelo menos na medicina moderna, foram as aulas para futuras mães, que muitas jovens grávidas tinham, onde aprendiam tudo a respeito do que estava acontecendo com elas e por que e o que fazer a esse respeito.
Então a ideia foi difundida, e um médico muito corajoso, que foi quase ridicularizado na profissão, achou que não havia nenhuma boa razão para que um homem não devesse aprender a fazer uma mamadeira e a trocar uma fralda. Assim houve aulas para futuros pais. E naquela ocasião descobrimos que a terapia de grupo era um fator poderoso no campo da saúde mental e emocional. Em algumas de nossas instituições para doentes mentais, o recurso de representar um papel (psicodrama) é usado para permitir às pessoas que expressem sua hostilidade latente, que se não puder ser de forma construtiva, pelo menos que seja de forma inofensiva.
Temos aplicado a terapia de grupo até numa de nossas maiores tentações, o campo da alimentação, e tem sido seriamente sugerido que se organizem "Obesos Anônimos" ou algo parecido. Não gostaria de ver A.A. ser sempre imitado, e muito menos com respeito a assuntos de menos importância. Mas o fato é que pessoas com excesso de peso podem fazer uma dieta mais alegremente em grupos do que sozinhas. Li num artigo do boletim de A.A., algo a respeito de um membro solitário, e posso imaginar o quanto deve ser mais difícil para membros solitários do que para seus grupos, porque eles não têm o apoio direto nem a simpatia dos outros que conhecem seu problema.
Na medicina, temos aprendido muito a respeito do tratamento físico do alcoólico. Temos aprendido acerca da nutrição e a importância de uma dieta totalmente voltada para vitaminas e sais minerais. Não as consideramos como curas para o alcoolismo, porque não acreditamos que a falta de vitaminas seja a causa do alcoolismo; isso é simples demais. Mas sabemos que essas coisas são necessárias no tratamento e reabilitação física do alcoólico. Sabemos também que vários tipos de desintoxicação e outras formas de terapia têm falhado. Não são suficientes por si mesmos. Precisamos de algo mais.
A exortação religiosa também tem falhado, como os conselhos de pessoas que não entendem o problema, que simplificam muito, pessoas que vêem o alcoólico como uma pessoa perpetuamente ansiosa, com uma grande compulsão pelo álcool, pessoas que não sabem que muitos alcoólicos odeiam o álcool mais do que o veneno, quando estão sóbrios, porque sabem perfeitamente que ele é um veneno.
Aprendemos a futilidade das promessas a longo prazo, que são muito difíceis de ser mantidas.
Vocês nos têm ensinado todas essas coisas, mais do que qualquer outro grupo que eu conheça. Tenho muitos amigos em A.A. Acho que tenho mais amigos em A.A. do que possa imaginar, talvez porque alguns de meus amigos não tenham ainda me contado que são AAs. Que eu me lembre, depois de alguns programas de rádio que fizemos, fui parado na rua da cidade onde resido, perto de Chicago, por pessoas que eu conhecia há muitos anos que vieram expressar seus agradecimentos pelos programas radiofônicos. Fiquei bastante surpreso com essas pessoas, mas à medida que o tempo foi passando, a surpresa foi diminuindo, à medida que via a eficiência do trabalho de vocês, com um homem de grande talento, meu amigo íntimo, que trabalhava numa profissão criativa, a qual não irei revelar porque isso possivelmente o identificaria, um homem que era quase um gênio. O álcool traiçoeiramente invadiu sua carreira, seus relacionamentos com os familiares e sua posição na comunidade. Vi sua esposa acobertando-o quando ela descrevia suas frequentes doenças, que aos poucos viemos a saber que eram doenças, mas não do tipo que ela queria nos fazer acreditar; presenciei quando estava a ponto de perder o emprego. Acompanhei a sua rendição quando foi despedido e completamente desesperado dizia:
"Não posso sair dessa sozinho. Preciso de alguém que me ajude"
E com a ajuda espiritual de seu clérigo e de A.A., esse homem voltou a uma posição de comando, em seu campo de trabalho, um homem que está hoje sóbrio e tão bem como qualquer pessoa neste auditório. Tenho fé de que ele vai continuar assim.
Esse é somente um dos muitos que tenho visto, e que outros médicos também têm visto.
Assim, mais e mais estamos começando a perceber que vocês têm em seus princípios – rendição, humildade, procura de orientação divina, sobriedade dia após dia e acima de tudo anonimato - a segurança de que ninguém vai ficar famoso como líder de Alcoólicos Anônimos. Esses princípios são todos de vital importância. Vocês que têm visto o que o álcool pode fazer em suas vidas estão trabalhando unidos, em grupos e individualmente, bem como causando o maior impacto sobre o problema do álcool, jamais conseguido antes, Precisamos desse impacto no mundo de hoje, um mundo no qual o medo domina.
O alcoolismo é uma fuga - de quê?
Bem, de situações intoleráveis em sua própria vida, e o mundo inteiro esta numa situação intolerável hoje em dia. Não é de admirar que o alcoolismo cresça. Não somente isso, mas estamos numa situação social, onde as tentações alcoólicas estão por toda a parte. Acredito que esta seja a única convenção, com exceção talvez das convenções estritamente religiosas, e nem todas elas, onde realmente não há consumo de álcool. Não sei se vocês são bem recebidos nas cidades onde há convenção. Certamente não fazem um grande favor aos bares.
Pessoas, que na época em que eu era criança, teriam olhado de esguelha para alguém que tomasse uma bebida, estão agora servindo socialmente aperitivos em suas casas. Nossos filhos estão crescendo num ambiente inteiramente alcoólico. Por cartazes, radio, televisão, em anúncios de todos os tipos, as qualidades das bebidas alcoólicas estão sendo exaltadas. Juntemos esses dois fatores - um mundo vivendo sob o domínio do medo e um mundo cheio de álcool e sugestões em relação ao álcool – e vocês podem ver como é importante que as pessoas percebam o que na verdade o alcoolismo é: uma doença emocional profunda que deve ser tratada de acordo com os princípios psicossomáticos. A palavra "psicossomático" simplesmente significa corpo e alma. Hoje em dia ouvimos falar muito a respeito da medicina psicossomática, mas permita-me dizer a vocês que qualquer médico que realmente seja digno desse título, em todos os tempos, tem praticado a medicina psicossomática.
O Sr. William Osler disse: "Não é tão importante saber que doença o paciente tem, mas que tipo de paciente tem a doença." Essa é uma das coisas que vocês de Alcoólicos Anônimos tem percebido.
Por isso vim aqui e estou muito agradecido por terem me convidado. Vim, como disse, para me colocar diante de vocês e admirar suas grandes realizações, bem como dizer que nós da classe médica temos a confiança de que tais realizações crescerão mais e de forma significativa, à medida que o tempo passar, porque vocês se propuseram a crescer, têm se mantido unidos e estão oferecendo ajuda, estendendo a mão àqueles que dela precisam.
Não sou psiquiatra, mas com fé digo a vocês, como tenho dito a milhares de pacientes, que a coisa de que mais precisamos neste mundo de hoje é a tranquilidade da mente. Vários nomes foram dados para essa expressão. Alguns livros a esse respeito têm sido muito populares.
Alguns chamam de poder do pensamento positivo, outros de paz do espírito, ou então de paz da alma, mas estou inclinado a concordar com Billy Graham e chamar esse estado mental de paz com Deus. Essas são as coisas de que precisamos.
E uma organização como a de vocês, num mundo que parece ter ido a um extremo materialismo, nos dá a coragem para acreditar que ainda há esperança, que ainda há idealismo e que vamos superar muitos, muitos de nossos problemas, dos quais um dos mais sérios é o alcoolismo.
O Primeiro Amigo de A.A.
O primeiro amigo de A.A., no campo da medicina, Dr. William Duncan Silkworth.
Esse foi o médico que tratou de Bill no princípio e esteve com ele durante sua experiência espiritual no Hospital Towns. Tinha mais fé em nossa Irmandade do que nós mesmos tínhamos no começo. Ele nos encorajou e nos apoiou publicamente, quando éramos quase desconhecidos. Ele nos proporcionou o conhecimento a respeito da natureza de nossa doença, com estas palavras: "alergia física mais obsessão mental".
Sua contribuição foi indispensável para o desenvolvimento do Programa de recuperação de A.A.
Durante sua vida toda, "o bondoso médico baixinho" tratou de 40.000 alcoólicos.
O Dr, Silkworth simboliza a grande compreensão e ajuda que Alcoólicos Anônimos tem recebido da classe médica.
Escreveu a declaração e carta a seguir que constam em nosso primeiro livro publicado, de cujo título foi extraído o nome da nossa Irmandade.
A Quem Possa Interessar:
Especializei-me no tratamento do alcoolismo há muitos anos. Em fins de 1934, atendi um paciente que, embora tivesse sido um competente e bem sucedido homem de negócios, era um alcoólico de uma espécie que eu viera a considerar sem esperanças.
Durante seu terceiro tratamento, ocorreram-lhe algumas ideias a respeito de um possível método de recuperação. Como parte de sua reabilitação, ele começou a apresentar seus conceitos a outros alcoólicos, convencendo-os de que deveriam fazer o mesmo com outros mais.
Isto se tornou a base de uma sociedade, em rápida expansão, destes homens e de suas famílias. Este homem, e mais de cem outros, parece terem-se recuperado. Conheço pessoalmente um grande número de casos do mesmo tipo, com os quais outros métodos haviam falhado por completo.
Os fatos acima parecem ter extrema importância para a medicina. Devido às extraordinárias possibilidades de rápida expansão do trabalho dessas pessoas, isto pode caracterizar o início de uma nova era nos anais do alcoolismo. Estes homens podem perfeitamente ter um remédio para milhares de situações semelhantes.
Pode-se confiar inteiramente em tudo o que eles dizem a respeito de si mesmos.
Foi, portanto, com real satisfação que recebi o convite para contribuir com algumas palavras a respeito de um assunto que é, nestas páginas, abordado com riqueza de detalhes.
Nós, médicos, percebemos há bastante tempo que algum tipo de psicologia moral era de extrema importância para os alcoólicos, mas sua aplicação apresentava dificuldades que ultrapassavam nossa compreensão. Entre nossos padrões ultramodernos e nosso enfoque científico diante de tudo, talvez não estejamos bem equipados para aplicar as forças do bem que subsistem fora de nosso conhecimento sintético.
Há vários anos, um dos principais colaboradores deste livro esteve sob nossos cuidados neste hospital e, durante sua estada, ocorreram-lhe algumas ideias que ele pôs imediatamente em prática.
Mais tarde, solicitou autorização para contar sua história para outros pacientes aqui internados e, com certa apreensão, nós a concedemos. Os casos que acompanhamos foram bastante interessantes; na verdade, muitos foram surpreendentes. À medida que passamos a conhecê-los, a falta de egoísmo desses homens, a total ausência de motivos interesseiros e seu espírito comunitário são realmente inspiradores para alguém que trabalhou exaustivamente e por muito tempo no campo do alcoolismo. Eles acreditam em si mesmos e, mais ainda, no Poder que arranca os alcoólicos crônicos das garras da morte.
Não há dúvidas de que um alcoólico precisa ser libertado de sua compulsão pelo álcool e, com frequência, isto requer um indiscutível tratamento hospitalar antes que medidas psicológicas possam ser inteiramente proveitosas. Acreditamos, e assim sugerimos há alguns anos, que a ação do álcool sobre estes alcoólicos crônicos é a manifestação de uma alergia, que o fenômeno, da compulsão limita-se a esta categoria de pessoas jamais acontece com o bebedor moderado médio. Essas pessoas alérgicas nunca podem, sem correr riscos, consumir álcool de qualquer espécie. E, tendo criado o hábito e descoberto que não conseguem abandoná-lo, tendo perdido sua autoconfiança, sua fé nas coisas humanas, seus problemas se avolumam e sua resolução passa a ser extremamente difícil.
Apelos emocionais superficiais raramente dão resultado. A mensagem capaz de interessar e influenciar os alcoólicos precisa ter profundidade e peso. Em praticamente todos os casos, seus ideais devem ter como base um poder superior a eles mesmos, caso desejem reconstruir suas vidas.
Se alguém considerar que, para psiquiatras na direção de um hospital para alcoólicos, parecemos um tanto sentimentais, que venha por algum tempo ficar ao nosso lado na frente de combate, observar as tragédias, as esposas desesperadas, os filhos pequenos.
Deixe que a solução destes problemas se torne parte de seu trabalho diário, e até mesmo de suas horas de sono, e o maior dos céticos não se surpreenderá com o fato de termos aceitado e encorajado este movimento. Estamos certos de que, após vários anos de experiência, nunca encontramos algo que tenha contribuído mais para a reabilitação destas pessoas do que o movimento altruísta que hoje se desenvolve entre eles.
Homens e mulheres bebem, essencialmente, por gostarem do efeito produzido pelo álcool. A sensação é tão ilusória que, embora admitindo que isto é prejudicial, eles não conseguem, depois de algum tempo, distinguir o verdadeiro do falso. Para eles, a vida de alcoolismo parece ser a única vida normal. Tornam-se inquietos, irritáveis e descontentes, a não ser que possam ter novamente a sensação de alívio e conforto que chega logo após tomarem alguns goles - goles que eles veem os outros tomarem sem problemas.
Depois de ter novamente sucumbido a este desejo, como tantos fazem, e depois que se desenvolve o fenômeno da compulsão, eles passam pelos bem conhecidos estágios da bebedeira, da qual emergem cheios de remorso, com o firme propósito de não beber outra vez.
Isto se repete inúmeras vezes e, a menos que essa pessoa possa sofrer uma radical mudança psíquica, há muito pouca esperança ele recuperação.
Por outro lado - por mais estranho que isto possa parecer aos que não compreendem - quando ocorre uma mudança psíquica, aquela mesma pessoa que parecia condenada, que tinha tantos problemas a ponto de perder as esperanças de resolvê-los algum dia, de repente se vê capaz de, com facilidade, controlar seu desejo de beber, precisando para isto apenas do esforço necessário para seguir algumas regras simples.
Houve homens que me imploraram, num apelo sincero e desesperado: "Doutor, não posso continuar assim! Tenho todos os motivos para viver! Preciso parar, mas não consigo! O senhor precisa me ajudar!"
Diante deste problema, e sendo honesto consigo mesmo, um médico precisa, às vezes, admitir sua própria incapacidade. Embora dando tudo de si, muitas vezes não é o suficiente. Sente que algo maior do que o poder humano é necessário para produzir a mudança psíquica indispensável. Ainda que o total de recuperações resultantes do esforço psiquiátrico seja considerável, nós, médicos, precisamos admitir que fizemos muito pouco diante do problema como um todo. Várias pessoas não reagem ao enfoque psicológico usual.
Não concordo com aqueles que acreditam ser o alcoolismo um problema unicamente de controle mental. Tenho tratado de vários homens que, por exemplo, trabalharam durante meses num problema ou transação de negócios que deveria ser resolvida em determinada data, que lhes seria favorável. Um ou dois dias antes dessa data, eles tomavam uma bebida e, então, o fenômeno da compulsão tomava-se mais forte do que quaisquer outros interesses e o compromisso importante não era cumprido. Esses homens não estavam bebendo por fuga, bebiam para satisfazer uma compulsão acima de seu controle mental.
Há várias situações que se originam no problema da compulsão e levam os homens a sacrificarem suas vidas, em vez de continuarem lutando.
A classificação dos alcoólicos parece muito difícil e, sob vários aspectos, foge ao propósito deste livro. Existem, sem dúvida, os psicopatas, que são emocionalmente instáveis. Estamos todos familiarizados com este tipo. Eles estão sempre "largando a bebida pra valer". Sentem-se super, arrependidos e fazem vários planos, mas nunca tomam uma decisão.
Há o tipo de homem que reluta em admitir que não pode tomar uma bebida. Planeja várias maneiras de beber. Muda de marca, ou de ambiente. Há o tipo que sempre acredita que, tendo se livrado inteiramente do álcool por algum tempo, pode tomar um gole sem perigo. Há o tipo maníaco depressivo, que talvez seja o menos compreendido por seus amigos e a respeito do qual poderia ser escrito um capítulo inteiro. E há os tipos absolutamente normais sob todos os aspectos, a não ser quanto ao efeito exercido sobre eles pelo álcool. Trata-se, frequentemente, de pessoas capazes, inteligentes e cordiais. Todos estes, e muitos outros, possuem um sintoma em comum: não podem começar a beber sem desenvolver o fenômeno da compulsão. Este fenômeno, como já sugerimos, pode ser a manifestação de uma alergia que diferencia tais pessoas e as coloca numa categoria especial. Nunca foi definitivamente erradicado por meio de quaisquer dos tratamentos que nos sãos familiares. O único alívio que podemos sugerir é a total abstinência. Isto nos lança imediatamente num caldeirão fervente de debates. Muito tem sido escrito a favor e contra, mas, entre os médicos, a opinião geral parece ser que a maioria dos alcoólicos crônicos está condenada.
Qual a solução?
Talvez eu possa responder melhor a esta pergunta com a narrativa de uma de minhas experiências. Cerca de um ano antes desta experiência, me foi trazido um homem para ser tratado de alcoolismo crônico. Estava parcialmente recuperado de uma hemorragia gástrica e parecia ser um caso de deterioração mental patológica. Havia perdido tudo e vivia apenas, pode-se dizer, para beber. Admitia e acreditava sinceramente que, para ele, não mais havia esperança.
Após a eliminação do álcool, nenhum dano cerebral permanente foi encontrado. Ele aceitou o plano delineado neste livro.
Um ano mais tarde, veio me ver. Minha sensação foi muito estranha. Reconheci o homem pelo nome e, em parte, por seus traços, mas qualquer semelhança terminava ali. De uma ruína trêmula, desesperada e nervosa emergira um homem cheio de autoconfiança e alegria.
Conversei com ele durante algum tempo, mas não fui capaz de me convencer que o havia conhecido antes. Para mim, ele era um estranho e assim se despediu. Já se passou muito tempo e ele não voltou a beber. Quando preciso de estímulo mental, penso, muitas vezes, em outro caso, trazido por um eminente médico de New York. O paciente havia feito seu próprio diagnóstico e, concluindo ser sua situação irremediável, escondera-se num celeiro abandonado, determinado a morrer. Fora resgatado por uma equipe de salvamento e, em condições desesperadoras, trazido para mim.
Após sua reabilitação física, teve comigo uma conversa na qual declarou, com sinceridade, que considerava o tratamento um esforço inútil, a menos que eu pudesse lhe garantir o que ninguém jamais fizera, que no futuro ele teria a "força de vontade" de resistir ao impulso de beber.
Seu problema alcoólico era tão complexo e sua depressão tão grande que acreditamos que sua última esperança estaria no que chamávamos então de "psicologia moral". E duvidávamos que até mesmo aquilo pudesse surtir algum efeito.
Entretanto, ele se entregou às ideias contidas neste livro. Não toma um só gole de bebida há muitos e muitos anos. Vejo-o de vez em quando e ele é, sem dúvida, o exemplo de homem que qualquer um gostaria de conhecer.
Sinceramente aconselho a todos os alcoólicos que leiam este livro até o final. Embora talvez venham para zombar, pode ser que fiquem para uma prece.
Atenciosamente,